Em entrevista à Assessoria de Comunicação da Procuradoria Regional da República da 3ª Região (PRR-3), o procurador da República, que atua em Sergipe, Paulo Gustavo Guedes Fontes, falou sobre a relação entre religião e Estado. Segue a íntegra da entrevista:
O pedido de retirada de símbolos religiosos nas repartições públicas do Brasil demonstra que hoje a presença da religião católica no Estado ainda é grande?
A Igreja Católica participou da formação do Estado brasileiro e há ainda muitas manifestações do catolicismo em espaços públicos. A Igreja exerce uma influência grande na discussão de políticas públicas como o aborto, a contracepção, o uso da camisinha na prevenção da AIDS. E, além disso, há essa presença simbólica.
A questão dos crucifixos em salas de audiência e até no auditório do Supremo Tribunal é emblemática. A toda evidência, isso fere o princípio da laicidade. A laicidade deriva da igualdade de todos perante o Estado e impede que seus representantes manifestem preferência por qualquer religião. O crucifixo é um símbolo católico ou cristão, mas nem todos são cristãos. Temos no Brasil judeus, mulçumanos, budistas, agnósticos, ateus... todos têm que se sentir representados na sala do Supremo. No último dia 03 de novembro, inclusive, a Corte Europeia dos Direitos do Homem, sediada em Strasbourg, condenou a Itália por manter crucifixos nas salas de aula das escolas públicas, por entender que há aí ofensa à liberdade de convicção e religião dos pais e dos alunos. Isso me parece muito óbvio e somente o peso secular do catolicismo pode inspirar a opinião contrária por parte de juristas tão importantes.
Alguns argumentam que o Estado laico não é antirreligioso, o que é correto. Mas a religião faz parte da esfera privada dos cidadãos. Pode-se permitir que um juiz mantenha um crucifixo no seu gabinete, mas nunca na sala de audiências, espaço público por excelência.
Outros afirmam que as demais religiões também poderiam fazer-se representar nesses espaços. Parece-me uma afirmação pouco realista, que não vai fundo no problema. O presidente do Supremo vai permitir justapor-se, ao lado do crucifixo, o crescente islâmico ou a roda dármica?
A retirada de símbolos religiosos deveria ser válida para qualquer repartição pública? Na sua avaliação, qual medida tem de ser tomada e qual efeito ela traria para a sociedade?
A laicidade impõe-se a todos os poderes do Estado, abrangendo também a administração indireta. O ideal é que houvesse uma lei disciplinando a questão, justamente para ressalvar o uso pessoal de símbolos, como véus etc, bem como espaços particulares dentro das repartições públicas, tudo precedido de uma discussão mais abrangente com a sociedade civil.
Contra essa retirada, já ouvi o argumento “pra quê?” ou “isso é exagero”. Essas reações derivam do desapego aos princípios ou são motivadas por um temor reverencial em relação à Igreja e à religião.
O homem é um ser simbólico e as mudanças simbólicas são importantes, talvez as mais profundas. Uma decisão como essa, de retirar os crucifixos, seria um passo em direção a uma maior igualdade entre os cidadãos, um tributo à cidadania e à democracia. Um ato não de desrespeito, mas de respeito aos brasileiros que professam outras crenças ou mesmo aos que não creem.
Além do catolicismo, podem ser observadas a presença de outras religiões e crenças nas repartições públicas brasileiras?
Não em termos de símbolos religiosos. Não me ocorrem outros casos. Lembro que em Salvador, no Dique do Tororó, há imagens de orixás, mas as vejo mais pelo lado cultural que religioso.
O crescimento do movimento evangélico, que conquista cada vez mais espaço no Congresso Nacional, pressiona de alguma forma por um Estado laico mais efetivo, forçando a diminuição da presença católica, já consolidada? Ou de alguma outra forma eles também se fazem presentes nas repartições ou no Estado em geral?
O pluralismo religioso está na base da laicidade e foi mesmo a sua origem histórica. A laicidade moderna de certa maneira é fruto da Reforma Protestante.
Mas os cultos evangélicos no Brasil, pelo menos muitos deles, não têm uma postura de respeito à diferença religiosa e à própria laicidade. Lembro do sacerdote protestante que chutou uma santa na TV e de constantes agressões verbais e até físicas praticadas contra os adeptos de religiões africanas.
Temos que discutir, por exemplo, a concessão de veículos de comunicação a entidades religiosas. Embora a laicidade não impeça a prática das religiões e a divulgação de suas mensagens, a verdade é que nem todas as confissões podem ter uma televisão ou rádio e isso coloca algumas delas numa posição privilegiada. Há ainda o delicado problema das relações entre a religião e a política.
As religiões exercem influência sobre as normas jurídicas? Seriam o casamento, a discussão sobre as células tronco ou sobre o aborto exemplos disso? Como o sr. acha que isso deveria ser tratado no Brasil – e como funciona em outros países?
A produção jurídica de uma sociedade é fruto dos seus valores e até de uma disputa entre valores conflitantes. É normal, pois, que setores religiosos se mobilizem quando se trata dessas questões – isso acontece em todo o mundo.
Mas é delicada a relação entre religião e democracia. Enquanto a democracia pressupõe o pluralismo, as religiões têm propensão a erigir suas crenças em verdade universal, isto é, rejeitam o relativismo de valores que, em certa medida, é próprio da democracia.
A democracia exige uma ética laica. Kant mostrou que a ética não pode ser fundada na crença religiosa, pois o conhecimento de Deus refoge à razão e é uma questão de fé. O fim do teológico-ético, como diz Luc Ferry, deve dar lugar a uma ética laica, humana, fundada na liberdade.
Assim, penso que o aborto deveria ser descriminalizado, pelo menos em certa medida, e que a mulher deve ser livre nessa decisão. Da mesma forma, por que negar a um casal homossexual direitos reconhecidos às outras uniões afetivas? São questões afetas à liberdade de cada um e o Estado deveria se esforçar para mantê-las assim. As religiões, que enaltecem o livre-arbítrio do ser humano, devem trabalhar nessa margem de liberdade para transmitir a sua mensagem e não se valer da autoridade estatal, como no passado.
A França, ao impedir, por exemplo, o uso do véu Islâmico em estabelecimentos de ensino, leva ao extremo a laicidade do Estado? Como encarar a recente manifestação de apoio do presidente Nicolas Sarkozy a um eventual ato legislativo que pretenda proibi-lo no território francês? O Brasil correria o risco de levar ao extremo a laicidade do Estado?
O Brasil precisa, ao contrário, reforçar o seu compromisso com a laicidade, entender que essa é uma questão séria, que merece discussão e diz respeito à igualdade entre todos.
A França é um país em que a laicidade do Estado sempre teve uma importância muito grande, desde fins do século XIX, na chamada Terceira República. A escola pública sempre foi um espaço laico por excelência e, naqueles primeiros tempos, era comum e até caricatural a oposição, nas pequenas cidades, das figuras do professor e do padre!
Acho normal que se proíba professores da escola pública e agentes do Estado em geral de usarem símbolos religiosos ostensivos, mas não concordo que se proíba a aluna mulçumana de portar o seu véu. Ela não representa o Estado e, como já tive oportunidade de escrever, o Estado laico existe justamente para que os cidadãos possam praticar a sua religião em pé de igualdade, sem apoio nem hostilidade por parte das autoridades.
A laicidade do Estado pode ser confundida com um ataque à liberdade religiosa e outras garantias fundamentais? Qual a importância do Estado laico nos dias de hoje?
Não deve. Como disse acima, a liberdade religiosa está na origem do princípio da laicidade. O Estado laico, quando surge, ao menos como princípio, em fins do século XVI, vem atenuar os conflitos das guerras de religião, conferindo liberdade aos diversos cultos e portando-se de maneira mais imparcial perante eles.
Hoje o islamismo militante e terrorista é um risco para a democracia. Contra isso, devemos defender o princípio dos Estados laicos e a ideia de que a religião insere-se na vida privada dos cidadãos, com a menor interferência possível na esfera pública.
E não podemos cair na tentação de limitar o exercício da liberdade religiosa por medo do terrorismo. O efeito pode ser contrário. A eventual proibição do véu islâmico na França, em todo o território e não somente nas escolas públicas, como já propôs Sarkozy, pode agravar conflitos de natureza religiosa e até reforçar o radicalismo dos grupos fundamentalistas.
Recentemente foi aprovado no Brasil o acordo com o Vaticano em que, dentre outras previsões, abre a possibilidade do Estado brasileiro aceitar decisões de tribunais religiosos, baseadas no direito canônico, permitindo que os fiéis recorram a eles para tratar de questões de matrimônio. Por outro lado, em 1890, o processo de separação entre Estado e Igreja foi tão radical que chegou a ser prevista a penalização de quem celebrasse as cerimônias religiosas do casamento antes do ato civil. Na sua opinião, o atual acordo firmado agora representa um avanço ou um retrocesso na separação entre o Estado e a Igreja?
O Tratado merece ser analisado com muito cuidado e a sua constitucionalidade poderá ser discutida no Supremo Tribunal Federal.
O problema inicial dá-se porque, embora formalmente se trate de um tratado entre Estados, na verdade se trata de um acordo entre o Estado brasileiro e a religião católica. Isso porque o Vaticano, num tratado como esse, não defende os interesses de seus nacionais, como faria qualquer outro país, mas os da Igreja que representa e que tem pleno funcionamento dentro do território brasileiro. Isso confere um privilégio ao catolicismo no trato com o Estado brasileiro.
Apesar das ressalvas existentes no tratado, que remetem algumas de suas previsões ao "ordenamento jurídico brasileiro", alguns pontos são realmente problemáticos do ponto de vista da laicidade. Um deles é o ensino religioso. O tratado fala em "ensino católico e de outras confissões" no horário normal da escola pública, afirmando que é de matrícula opcional. Temos que discutir isso. Como se oportunizará a todas as confissões um espaço no quadro de horário normal das escolas? O que pode haver é um horário dedicado a temas religiosos ou espirituais em geral, ministrado por professor que não seja sacerdote de qualquer religião, e não uma aula de catolicismo, outra de protestantismo, outra de espiritismo. A França resolveu isso suspendendo as aulas da escola pública nas quartas-feiras à tarde, para que as famílias, às suas expensas, busquem o ensino religioso que quiserem.
Fonte: MPF/SE